24 de junho de 2014

Conto: "As mulheres da minha rua..."

As mulheres da minha rua: viúvas, solteiras e malcasadas

Ao primeiro olhar, a rua estreita e quase sinuosa parece continuar igual ao que sempre foi: pacata, pitoresca, uma das muitas que constituem o labirinto histórico da cidade, por onde os visitantes vagueiam olhando para os lados e para cima, a encher a memória das câmaras digitais de cores, ângulos e imagens. Ou, pelo menos, é essa a ideia vendida pelos folhetos turísticos que todos eles levam na mão. Mas eu, que a conheço por dentro quase desde que nasci, nem preciso olhar uma segunda vez para saber que a velha rua está hoje tão desbotada pela passagem do tempo como uma daquelas fotografias de infância que guardo no canto sombrio da memória. As casas, apertadas umas contra as outras, como que a encolherem-se para caberem no espaço estreito, estão na sua maior parte vazias, abandonadas à sua sorte.

As paredes espessas, de onde o vento e a chuva desprendem caliça, estão repassadas de humidade e sobre algumas vai alastrando uma película de verdete que deixa no ar um leve odor a bafio e a decomposição. Noto sobretudo um grande silêncio que amplifica os sons da cidade, mesmo os mais banais e longínquos, fazendo-os ecoar demasiado estridentes. Do bulício doméstico que preenchia os dias da gente que aqui fez a sua vida e há muito deixou este plano da existência já só restam memórias dispersas, alguns nomes e pequenos fragmentos de estórias nem sequer muito originais.
Lembro-me bem da dona Alice, viúva desde os quarenta e picos, com uma única filha então já adulta e com família constituída, que inventou para si própria o título de “mulher mais asseada da rua” e fez da pública e inequívoca demonstração desse seu convencimento a grande razão de existir. 

Durante muitos anos evitou até usar a canalização da própria casa para os despejos que, certamente, aí acumulariam uma sujidade difícil de eliminar. Por isso, ao longo do dia, juntava num balde as águas sujas da casa e, ao início da noite, quando toda a gente estava recolhida para jantar, ia despejá-lo perto da sarjeta situada a menos de vinte metros, evitando fazer barulho. Depois voltava quase rente às paredes e fechava a porta muito devagar para não chamar a atenção dos vizinhos. Apesar de todos estes cuidados a verdade é que, com o passar dos anos, o peculiar hábito que ela tanto queria secreto acabou por se tornar conhecido, motivando de imediato ásperas críticas por parte das vizinhas que, a qualquer hora do dia, mantinham em surdina frequentes e longas conversas entreportas, e diz ela que é asseada, faria se não fosse, atirava uma, enquanto a outra logo acrescentava em voz baixa, enquanto olhava de través na direção da janela da dona Alice não fosse ela aparecer de repente e perceber que era o tema da conversa, ela nem faz comida para não sujar a cozinha, anda a pão e queijo dias seguidos para não perder tempo e poder limpar a casa de cima a baixo, coitada, aquilo é doença com certeza..., cuidado que ela está à porta e percebe..., bom dia dona Alice, como está hoje a senhora...ah, estava mesmo agora a comentar com a vizinha Joana que não há porta tão limpa como a sua aqui nas redondezas, até dá gosto ver...

Claro que as coisas azedaram no dia em que a dona Alice, certamente para evitar que o intenso e característico odor de coentros, alho e azeite interferisse com o perfume de lixívia impregnado nas paredes, resolveu despejar os restos de caldo de uma açorda junto à porta da vizinha da frente logo depois do almoço, e não ao serão, junto à sarjeta, como lhe era habitual. Apanhada em flagrante, o mínimo que se pode dizer é que viu logo ali a sua reputação de fada da vassoura de piaçaba a andar às arrecuas, enxovalhada que foi pelos impropérios que a outra não se coibiu de lhe atirar à cara em alto e bom som e os quais ela, silenciada não pelo peso na consciência, mas pela humilhação de ter sido descoberta - e logo por aquela pelintra que só lava o degrau da porta de mês a mês, ou nem isso -, nem tentou refutar, fechando-se de imediato em casa para não voltar a ser vista durante o resto do dia e evitando vir à rua nos seguintes não fosse ter algum mau encontro e sujeitar-se a novo vexame. 

Contudo, nem esse incidente lhe moderou o ímpeto higiénico e, fizesse sol ou chuva, a dona Alice lá continuou a lavar meticulosamente o degrau de mármore da porta duas vezes por dia numa espécie de ritual que, dependendo do número de transeuntes e grau de interesse dos mexericos mais recentes, se podia estender por várias horas ou ocupar mesmo toda uma tarde até quase ao anoitecer. As próprias pedras da calçada junto ao rés-do-chão onde viva, situado quase a meio da rua, no lado dos números ímpares, eram vigorosamente esfregadas uma a uma com uma vassoura rija, cujo cabo de madeira mandava cortar de propósito para ter que se dobrar como se andasse na monda. Décadas deste árduo labor acabaram por lhe curvar as costas a ponto de, por fim, não conseguir sequer endireitar-se, mas a larga cópia de informações sobre a vida de todas as almas da vizinhança e arredores que assim conseguiu acumular e divulgar pareceu sempre compensar-lhe largamente o desaire.

No primeiro andar da casa da dona Alice vivia a menina Graça, que era também sua senhoria. À beira já dos quarenta, era a única mulher numa ninhada de sete irmãos e até então apenas se lhe conhecera uma única paixão na vida: o vizinho solteiro que vivia com a mãe no extremo da linha de casas, mas no lado dos números pares. Funcionário de uma companhia de seguros, sempre impecável no seu fato e gravata, educado e muito discreto, cumpria horários tão regulares que todos na rua sabiam a que horas a menina Graça interromperia por instantes os seus muitos afazeres domésticos para se debruçar numa das sacadas e testemunhar a chegada do cobiçado solteiro para almoçar. Na vizinhança, este interesse era conhecido e até comentado, mas nunca se chegou a saber se o pretendido também sabia disso e fazia questão de ignorar a quase ostensiva presença feminina que assim o espiava às claras, ou se ele nunca sequer reparou ou se interrogou sobre o motivo por que ela estava ali, sempre omnipresente na hora exacta em que ele regressava a casa. 

Embora a menina Graça até fosse aquilo a que então se chamava um bom partido, pois era herdeira de uma família abastada, certo é que nunca o pretendido mostrou qualquer sinal de reconhecimento, menos ainda de interesse por ela. Mas nem por isso o impulso amoroso da menina Graça esmoreceu. Apenas, com o decurso dos anos, se foi tornando uma espécie de hábito adquirido que ela mantinha de forma instintiva enquanto, ao mesmo tempo, respondia às interpelações vindas do interior da casa, virando apenas ligeiramente o rosto para dizer vou já, vou já, sem nunca desviar o olhar vigilante do fundo da rua.
Na rua morava também a dona Rosa, que andava já na casa dos cinquenta anos, mas cujo rosto revelava ainda traços evidentes de uma beleza que, em seu tempo, devia ter dado a volta à cabeça de muito rapaz. Sempre com o cabelo pintado e muito bem arranjado, de saia travada pelo joelho, morava sozinha numa espécie de parcela de casa, constituída apenas por uma estreita divisão em cada um dos dois pisos, contígua às casas da dona Alice e da menina Graça, de quem, aliás, também era inquilina. 

Situada mesmo a meio da rua, tinha ainda a particularidade de possuir um poial de granito com pelo menos meio metro de altura a que era literalmente necessário trepar para poder alcançar o puxador de uma dupla meia porta, única forma de conseguir arejar o acanhado interior, permitindo ao mesmo tempo a entrada de luz. Ninguém lhe conhecia profissão e o seu estado civil era obscuro mas, na rua, constava que estava separada do marido há muitos anos. Certo é que, numa época em que todas as vizinhas ainda davam uso à roupa branca dos enxovais pacientemente acumulados na mocidade, com ou sem entremeios de renda e bordados mais ou menos elaborados, dependendo das possibilidades financeiras e habilidade de mãos de cada uma para a costura, a exuberante paleta de cores e padrões dos lençóis de compra que a dona Rosa secava no estendal deixava a vizinhança em alvoroço, pois era vista como um sinal de descarada modernice e óbvio desafogo financeiro. Sempre estendidos bem abertos e ao comprido, como se quisesse que todas as vizinhas os pudessem apreciar e comentar, faziam-me lembrar coloridos penachos de aves ondulando em ostensiva parada nupcial. 

Mas esse esparramar de cores e padrões devia-se às nocturnas e regulares visitas de certo senhor de meia-idade. Aliás, o número de vezes que o estendal se enchia de lençóis permitia às vizinhas manter uma contabilidade actualizada dessas visitas e algumas afirmavam mesmo que todas as semanas ela estreava roupa de cama, coisa que, à época, raiava o quase-escandaloso. Já do seu visitante nocturno apenas sabiam que era negociante de gado, casado e pai de filhos, o que fazia da dona Rosa a sua amante oficial, com casa posta e total dependência da sua generosidade e disponibilidade financeira. Uns anos mais tarde, com a morte abrupta do amante, o estendal da dona Rosa perdeu muita da sua exuberância, da mesma forma que ela perdeu o desafogo financeiro. O que lhe vale é ter sabido aproveitar o bom tempo, dizia-se na rua à boca pequena e foi certamente esse pé-de-meia que lhe permitiu subsistir com um mínimo de dignidade ainda durante algum tempo até ser forçada a mudar-se de vez para casa de uma irmã.

Destas três mulheres, já só uma está viva, a dona Alice, internada num lar há vários anos. Nunca mais voltou à casa que lavou e limpou obsessivamente durante décadas. E, a julgar pela sujidade acumulada nos cantos do degrau da porta, é melhor assim. Novos inquilinos e proprietários tomaram conta das casas onde estas três mulheres viveram, mas o certo é que a rua me parece cada mais vazia a cada ano que passa. E, se há trinta anos atrás todas elas me irritavam profundamente por nunca conseguir entrar ou sair de casa, fosse dia ou noite, sem que pelo menos uma delas desse conta e viesse logo à janela passar-me uma minuciosa revista ocular que me deixava sempre a desconfortável sensação de ter sido apanhada em flagrante sem ter feito nada de errado, hoje, entendo-as melhor e olho para as suas vidas de outra forma, talvez até com uma certa nostalgia, de tal forma que, quando às vezes subo a rua e já ninguém aparece a espreitar-me como antes, sinto a sua falta. Pior que isso, com o desaparecimento destas personagens e das suas idiossincrasias, a verdade é que a rua perdeu a sua verdadeira alma e tornou-se igual a tantas outras da cidade: vazia, decadente, a manter uma pose forçada para os turistas ocasionais que lhe tiram retratos enquanto fazem dela rota de passagem para destinos mais apelativos. À espera do fim.

Francisca de Matos
(in "Sulidão")

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