É certo que a ditadura caiu e o império se desfez, mas ainda falta cumprir-se o 25 de Abril. Com efeito, Lisboa deixou de ser a Capital do Império da República Portuguesa para se transformar na voraz Cidade-Estado da República de Lisboa que, tal como Cronos, devora hoje os filhos do seu próprio povo e deste pobre País.
Foi, por isso, com profunda indignação e extrema revolta que ouvi o apelo do vate da República para que o Parlamento aprovasse a trasladação dos restos mortais do alentejano Salgueiro Maia para o Panteão de Lisboa. E Manuel Alegre, senador da República de Lisboa, não precisava sequer de pensar muito para perceber a afronta que significa para um alentejano a simples sugestão de ser enterrado em Lisboa. Em todo o caso, vou recordar-lhe.
Durante os últimos quarenta anos, o poder político sediado na capital, traindo os ideais de Abril, transformou Lisboa num enorme eucalipto que vai desertificando, ano após ano, de forma persistente, constante e desumana, todo o território nacional. Neste momento, de Portugal só já sobeja uma estreita faixa litoral delimitada a sul pelo Tejo, a norte pelo Douro e a leste pela A1. Para lá desta faixa litoral fica o deserto, como o ministro Mário Lino, com aquele seu tom de desprezo, tão bem soube catalogar.
E os alentejanos são hoje os homens do deserto. E é no deserto de Castelo de Vide, no chão sagrado do Alentejo, que está sepultado o alentejano Salgueiro Maia (ainda que considere que os autarcas do Alto Alentejo já deviam ter diligenciado para que os seus restos mortais fossem traslados para a Igreja Matriz, para o castelo ou para outro lugar relevante no centro da vila).
Como eu já escrevi, "o Alentejo molda o carácter de um homem. A solidão e a quietude da planície dão-lhe a espiritualidade, a tranquilidade e a paciência do monge; as amplitudes térmicas e a agressividade da charneca dão-lhe a resistência física, a rusticidade, a coragem e o temperamento do guerreiro. Não é alentejano quem quer. Ser alentejano não é um dote, é um dom. Não se nasce alentejano, é-se alentejano."
E Salgueiro Maia era alentejano por nascimento e temperamento. A coragem, a serenidade e o desprendimento são características típicas do alentejano.
Acresce que propor a trasladação dos restos mortais do alentejano Salgueiro Maia para o Panteão de Lisboa no preciso momento em que o Governo anuncia o encerramento do Tribunal Judicial de Castelo de Vide só pode ser entendido como um insulto à sua memória, a todos os alentejanos e ao Alentejo. Aliás, neste momento, não há um único alentejano que conseguisse descansar em paz enterrado no chão da Cidade-Estado. Leva-nos os vivos e, com eles, as escolas, os hospitais e os tribunais e, não contente com isto, quer agora também levar-nos os mortos? Antes ser enterrado no Inferno.
Eu compreendo que os políticos da República de Lisboa gostassem de ter o Capitão de Abril ali à mão de semear para, de vez em quando e por rotina, lá irem colocar uma coroa de flores e dizer umas palavras de circunstância. Mas têm de ter paciência como os alentejanos. Se querem depositar coroas de flores no túmulo de Salgueiro Maia, têm de vir a Castelo de Vide, sempre têm a oportunidade de apreciar na viagem o deserto em que transformaram o interior deste País.
Como alentejano, peço, do mais fundo da minha alma, aos familiares de Salgueiro Maia, símbolo vivo do Alentejo e do carácter dos alentejanos, que, no dia em que for aprovada a sua trasladação para o Panteão de Lisboa, saibam responder aos senhores da Cidade-Estado como responderia Salgueiro Maia. E até podem, se quiserem, responder à proposta do vate da República de Lisboa com o conhecido refrão de um poema de um jovem poeta coimbrão: "Há sempre alguém que resiste! Há sempre alguém que diz não!"
Santana-Maia Leonardo
(in Público, Fev 2014)
(in Público, Fev 2014)
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