18 de dezembro de 2017

Associação de Defesa do Património recupera forno comunitário em Beja


Só os que têm mais de 30 anos é que ainda se recordavam do tempo em que a Ti Bia Gadelha cozia o pão que as famílias amassavam em casa, cobrando apenas uma dízima, em géneros, pelo serviço que prestava. Era o único forno comunitário da cidade, e um dos que mais tempo se mantiveram em funcionamento de entre cerca de uma dezena que foram sendo destruídos, à medida que as unidades panificadoras e o consumo de “carcaças com mamilos” foi substituindo o característico pão alentejano. Agora, vai voltar a aquecer e é motivo de festa, com vários artistas de Beja reunidos para garantir apoios.

A recuperação do forno da Ti Bia Gadelha, situado na Rua Aresta Branco, muito próximo do castelo de Beja, tornou-se possível depois de os irmãos Vera Maria dos Santos Monteiro Torres e Pedro Jorge dos Santos Monteiro Torres, ambos médicos em Lisboa, o terem doado, com uma casa contígua, à Associação para a Defesa do Património Cultural da Região de Beja (AdpBeja).

Florival Baiôa, 66 anos de idade, historiador e presidente da AdpBeja, dinamizador do projecto de recuperação do forno, recordou ao PÚBLICO que, quando era criança, tanto ele como outros miúdos estabeleciam itinerários pelas ruas de Beja “sempre pela sombra, fugindo ao sol tórrido do Verão” para levar um tabuleiro de esmalte com os “panitos” (pães) cobertos com um pano branco ao forno da Ti Bia Gadelha. Ficava quase a um quilómetro da sua casa. Na época, “as pessoas amassavam o pão em casa e este durava 15 dias”, acentua. Agora, ao fim de três dias já começa a ganha bolor. “É o problema das farinhas industriais”, observa o historiador. E revela um pormenor: para além do trigo que será moído no moinho da Ti Xica, erguido junto à rotunda que assinala a entrada na cidade de Beja, “vai-se utilizar ‘trigo’ mourisco, sem glúten.” Não se trata de um cereal, mas de sementes de um fruto aparentado com as azedas.

O historiador avança ainda uma curiosidade: a lenha que se utilizava no forno da Ti Bia era de esteva, por ter “uma combustão lenta, no tempo adequado, e um cheiro fantástico que perfumava o ambiente da zona envolvente”. Vinha em mulas da zona de Baleizão e de mais longe ainda. Por ser uma lenha óptima para os fornos, vai retornar ao da Ti Bia “para dar um sabor especial, sobretudo aos assados“, garante Florival Baiôa.

Logo que tomou conhecimento da proposta de recuperação do forno da Ti Bia Gadelha, o cantor e compositor António Zambujo propôs a realização de um espectáculo solidário para angariação das verbas destinadas às obras. Ao PÚBLICO Zambujo, natural de Beja, e que viveu em criança mesmo junto ao forno da Ti Bia, diz que já não o conheceu a funcionar. O lugar estava ocupado “por um sapateiro e ao lado havia um barbeiro com muita falta de vista”. A rua era espaço de brincadeira, “porque havia muitos miúdos a andar de bicicleta e a jogar à bola”. Hoje sobra o silêncio e as casas vazias.

“É frequente as pessoas imputarem responsabilidades a terceiros quando se trata de resolver o que interessa a todos”, observa o cantor/compositor. “Devem ser os cidadãos a fazer o que tem de ser feito pelos nossos sítios, incutindo o sentido comunitário”, defende. Neste sentido, diz ter “um gosto enorme em associar-se a outros companheiros de Beja”, como Bruno Ferreira (imitador de vozes), Cantadores do Desassossego, Discípulos, Jorge Serafim, Grupo Coral de Beja e Virgem Suta, para dar hoje um concerto, às 21h30, no Cine/Teatro Municipal Pax Júlia (a lotação está esgotada). Não cobram cachet para financiar o que na realidade os motiva: a recuperação do tradicional pão alentejano e de uma vivência popular que o tempo e as “modernices” foram esbatendo. A eles juntam-se os artistas André Lança, Pedro Fernandes, Sofia Almeida e Paulo Monteiro e Susa Monteiro que vão inaugurar hoje, às 18h, uma exposição de artes plásticas com o mesmo objectivo.

As obras de recuperação do forno têm o acompanhamento técnico da Câmara de Beja e estão a ser executadas por trabalhadores da União de Freguesias de Santiago Maior e S. João Baptista. A entrada em funcionamento do forno está prevista para Março/Abril.

Quem era a Ti Bia Gadelha?

Ti Bia Gadelha ou Tia Maria do Forno trabalhou até quase ao fim dos seus dias, há cerca de 30 anos. Toda a gente a conhecia e ao redor do forno cheirava a esteva queimada que se libertava e se espalhava pelo velho bairro de Beja.

Viam-na comer com o companheiro do mesmo prato, “em frente um do outro”, numa mesa junto ao forno, descreve o historiador Florival Baiôa.

O nome já vem de longe. Recebeu-o de um antepassado, um velho acendedor de candeeiros de rua alimentados a azeite, no início do século XX. Ostentava uma farta cabeleira, isto é, uma “grande gadelha”, que lhe ficou como “imagem de marca”. Os seus familiares ainda hoje mantêm a alcunha como um ícone, como é o caso de duas sobrinhas-netas.
(Público)

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