Durante a sessão pública das Academias Pontifícias, realizada na terça-feira no Vaticano, o arqueólogo Cláudio Torres, director do CAM, foi surpreendido com uma mensagem enviada aos participantes no encontro pelo Papa Francisco onde este diz: “Apraz-me entregar o prémio das Academias Pontifícias à associação portuguesa Campo Arqueológico de Mértola pelas campanhas arqueológicas conduzidas nos últimos anos e pelos extraordinários resultados obtidos”, acrescentando ainda que pretende “encorajar e apoiar” os que se comprometem na “pesquisa histórico-arqueológica e relativa aos mártires”.
Cláudio Torres, agnóstico confesso, não encara a atribuição do prémio como uma contradição como alguns possam presumir, mas antes como “uma motivação extra” para os estudiosos da arqueologia. Nas declarações que prestou ao PÚBLICO, o director do CAM destacou o “conhecimento profundo e a inteligência” dos representantes do Vaticano com quem trocou informações quando estes se deslocaram a Mértola para se inteirarem da dimensão do trabalho realizado pelos investigadores portugueses.
Contradição, acrescenta Cláudio Torres, existe apenas na história escrita. Em vez de encontrarem vestígios de “cavalos e camelos que teriam invadido a Península Ibérica” durante a pretensa invasão “árabe” vinda do norte de África, “demos com abundantes sinais de “comunidades cristãs bem enraizadas”. Do Islão, nada.
A ideia clássica que prevalece na história oficial de que a Península Ibérica “teve ocupação islâmica através de uma grande invasão não está provada” garante o arqueólogo, frisando que após décadas de escavações e estudos profundos “não há provas de tal invasão”.
A questão é outra, acentua: “A igreja cristã precisava de justificar a derrota perante o Islão” efabulando sobre uma colossal invasão de infiéis. “E do outro lado (do Islão) passou-se precisamente a mesma coisa”. Disseminaram a ideia de que “meia dúzia de guerreiros seus tinham ocupado um país gigantesco: a Península Ibérica”.
Para Cláudio Torres, “os grandes movimentos de ideias nunca foram impostos pelas armas mas através dos comerciantes e mercadores”, sublinhando que “não é à paulada nem à espadeirada que se propagam ideologias”.
O que os “cacos” transmitem é que o cristianismo chegou à Península Ibérica “através dos escravos e dos pobres”, que tinham necessidade da promessa de um paraíso que os ajudasse a suportar “o vale de lágrimas da vida terrena”, resume o arqueólogo, descrevendo os acontecimentos provados: “O que sabemos hoje é que o mundo paleocristão chegou antes do Islão. Quando os muçulmanos chegaram à Península Ibérica já havia várias seitas cristãs monofisitas que não aceitavam a Santíssima Trindade, o grande cristianismo de Roma.”
Em Mértola, as escavações realizadas pelo CAM recuperaram uma boa quantidade de lápides com inscrições em grego e, pelo menos três delas, tinham o nome Eutiques, precisamente o fundador do movimento monofisita no século V d.C, que se opunha a Bizâncio. Um deles foi presbítero em Mértola, onde já foram descobertos vestígios de uma imponente basílica e de grandes batistérios. Neste momento, os arqueólogos estão a interpretar “uma igrejinha do século VI que estava debaixo da mesquita e por cima de um templo romano”, assinala Cláudio Torres.
(Público)